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É PRECISO ESQUECER


Sentei-me na sala em frente a tevê. Tinha acabado de chegar em casa e o sono ainda não tinha chegado em mim. No celular, uma mensagem de minha namorada perguntando se eu tinha chegado bem. A intenção da mensagem, no entanto, era saber se de fato eu teria chegado em casa. Eram três anos de namoro e eu conhecia muito bem os truques de Amália. Respondi com um vídeo que estava bem. Saber que eu estava em casa evitaria que ela ficasse conversando toda a madrugada. Eram quase 3 horas da manhã e eu só queria ficar sozinho. 

Coloquei o celular sobre o braço do sofá e voltei à tevê, passei todos os canais e nada de interessante. Ainda pensei em assistir a alguma coisa na Netflix, mas com certeza eu dormiria. Acabei por concluir que não era uma boa ideia. Deitei-me então no sofá e fiquei vendo as fotos daquela noite de sábado com a galera. Amália parecia muito feliz, tinha conversado e sorrido bastante. E sempre que algum conhecido dela aparecia que eu ainda não tinha conhecido pessoalmente, ela fazia questão de me apresentar. Passara toda a noite me exibindo como o seu troféu. 

Como disse, eu conhecia todos os seus truques. Não me importava muito em ser mostrado dessa maneira. Era fim de ano e no bar muitas pessoas, parentes dela e amigos tanto meus como dela estavam ali pela primeira vez. Por muitas vezes tanto ela me apresentava aos seus amigos como eu a apresentava aos meus amigos. Foi uma noite agradável. Damos grandes gargalhadas e ouvimos e contamos muitas histórias. Fixei meu olhar em uma foto em que Amália me beijava o rosto, dei zoom. Éramos um belo casal. Na foto também estava Pedro, primo de Amália, e a namorada, Lourdes. 

Fixei o olhar na fotografia. Eles também eram um lindo casal. Não sei porque decidi mandar a foto para Lourdes que me respondeu dizendo que ainda estava no bar com Pedro. Senti uma enorme vontade de voltar para lá, mas me contive. Eu era bom, muito bom em me conter. As pessoas sempre me diziam: - poxa, João, você é muito controlado, nada te irrita – irrita sim, eu pensava, mas desde muito cedo decidi guardar para mim meus pensamentos e meus desejos e sempre fui muito racional, tanto que as vezes tinha raiva de mim mesmo por isso. 

Lembro-me que namorei Amália por mais de seis meses para aceitar que estávamos tendo um relacionamento sério. Ela nunca me pressionou, sempre soube aceitar o meu tempo das coisas e eu a amava por isso. E também porque ela era muita linda. E assim como ela aprendeu a me entender, eu aprendi a entendê-la. Mas dentro de mim alguns sentimentos amarrados pelos fios da razão, gritavam e tentavam a todo custo se libertarem. Vez por outra percebia que não era forte o suficiente para mantê-los e me preparava para quando fossem libertos. 

Não me dei conta de como aquilo aconteceu. Acordei-me com o sol a iluminar meu rosto, olhei no celular do lado da cama, eram 8 horas e 22 minutos. Quando me virei, quase infarto ao ver do meu lado na cama Lourdes nua. Ela não se assustou tanto. Eu morava sozinho, tinha decidido por isso desde que comecei a trabalhar no meu primeiro emprego. Era para Amália ter ido dormir comigo, como sempre fazia. Mas por estar recebendo visita da família em casa, decidiu que dormir fora não era apropriado. 

Como aquilo tinha acontecido? Lourdes mostrou-me as mensagens de nossa conversa e eu me lembrei de tudo. Tínhamos combinado tudo. Na sala, ainda apagado, estava Pedro. Não conseguia acreditar no que tinha acontecido e o medo de que Pedro tivesse visto ou escutado eu com sua namorada me desesperava a alma. Não demorou e recebi uma ligação de Amália preocupada com seus hóspedes. Acordei Pedro que tomou um banho e voltou para casa da prima. 

Salvei-me da desconfiança de Amália. E a expliquei que os dois apareceram muito bêbados e pedindo para dormirem na minha casa. Ela não quis muitas explicações e ficou por isso mesmo. No entanto, um desespero tomou conta de meu ser. Eu me lembrava de ter feito sexo com a namorada do primo da minha namorada. Tudo àquilo parecia muito errado e não eu conseguia lidar com mentiras. Vivia em suspense esperando que uma hora ou outra as versões das histórias se contradissessem e Amália descobrisse tudo. 

Logo após o almoço de família na casa de Amália, Pedro me chamou para ir à minha casa buscar seu celular que havia ficado lá. Eu fui com o coração acelerado, com certeza de que ele tinha me visto com sua namorada e queria tirar satisfação. No carro, muitas coisas se passavam em minha cabeça. Ao mesmo tempo em que pensava que ele sabia de tudo também pensava que ele não sabia de nada. A dúvida era o que mais me maltratava, o suspense instalado naquela situação ganhava mais força com o silêncio dele, que nem parecia o jovem simpático e risonho da noite anterior. 

Abri a porta de casa ansioso. Como eu tinha me metido naquela confusão? Logo eu, pensava, que era tão racional. Fui para o quarto enquanto no sofá, Pedro procurava seu celular. Vim feliz ao encontro dele perguntar se já havia encontrado o celular. Nem cheguei a perguntar, ele segurava o celular na mão e me chamando para ver algo, pediu que me sentasse do seu lado. Ao ver ele abrir a galeria do celular, tranquilizei-me, por certo queria me mostrar as fotos da noite anterior. 

Sentei-me ao seu lado com a respiração voltando ao normal, retomando todas as amarras dos meus sentimentos. Eu era muito bom em amarrar desejos, opiniões, medo, anseio... tinha me transformado num especialista em autocontrole e era justamente isso que me incomodava. Já havia passado por tentações maiores e havia resistido e não entendia como eu tinha caído tão fácil naquela situação. Eu até achava Lourdes linda, mas não me sentia tão atraído assim, a ponto de trair minha namorada. Essa culpa também me consumia. 

Não era foto o que Pedro queria me mostrar. Era um vídeo. Mas não importava, uma coisa ou outra me deixava tranquilo. Ao abrir o vídeo eu quis me levantar, mas sem dizer nada Pedro me segurou pelo braço indicando que eu ficasse ali. Assustado olhei para Pedro e disse que podia explicar. Como? Eu pensava. Eu não sabia, mas era isso que as pessoas diziam quando eram pegas no flagra. Nunca entendia porque as pessoas falavam que podiam explicar o que já estava nítido. No entanto, eu havia dito exatamente isso. Pedro colocou o dedo indicador em seus lábios pedindo silêncio com aquele gesto, eu obedeci. 

No vídeo, Lourdes tirava a roupa dançando para mim. E eu já sem roupa na cama me excitava com a cena. E durante os quase cinco minutos do vídeo ficamos ali calados. Enquanto minha alma era consumida pelo medo e o desespero daquele silêncio. O vídeo terminou com Lourdes sobre mim em um vai e vem frenético. Pedro colocou o celular no braço do sofá e virou-se para mim. Novamente disse que podia explicar. Novamente ele pediu silêncio, só que agora o dedo indicador dele estava sobre os meus lábios. Enquanto sua mão sobre minha coxa me fazia experimentar o maior suspense da minha vida. 

Ele retirou o dedo dos meus lábios e sua mão ainda em minha coxa fazia meu coração bater mais forte. Então ele aproximou seu rosto do meu e quis tocar seus lábios em minha boca. Eu tirei o rosto. Ele pegou seu celular, abriu o aplicativo de mensagens e selecionou o vídeo para enviar para Amália. Com o celular diante dos meus olhos e com dedo no botão de enviar, aproximou novamente sua boca da minha e me beijou. Eu recebi seu beijo com um misto de medo, desespero e nojo. Mas a razão em minha cabeça gritava que era o que eu devia fazer para não perder o amor de minha vida. 

Enquanto ele se despia diante de mim, eu sentia o desejo assustador de fugir ou de mata-lo. Não sabia como uma pessoa conseguia dominar tão bem outra sem ao menos dizer uma palavra. Nada fiz. Ele por outro lado fez tudo o quis. Despiu-me e beijou todo meu corpo. E enquanto ele fazia sexo oral em mim, eu peguei sobre o centro um jarro de vidro e bati em sua cabeça antes que ele gozasse. Senti um enorme prazer ao ver ele sagrando no chão da sala. Para mim aquela imagem era mais agradável do que vê-lo me chupar enquanto se masturbava. 

Os gemidos dele, fortes e abafados, anunciavam que ele tinha gozado. Ele então se afastou de mim e começou a se vestir. Meu olhar fixo no jarro de vidro sobre o centro me fez perceber que eu ainda conseguia ter autocontrole, e a imagem do corpo de Pedro caído no chão da sala ficou apenas em minha cabeça e no meu desejo aprisionado pelos fios da razão. Em minha mente, um misto de lembranças de prazer da noite anterior, repugnância do que tinha acontecido ali com Pedro e culpa por ter traído Amália me atormentava. E enquanto eu me vestia, Pedro me dizia ás únicas palavras que falara durante toda aquela situação: - vai ficar tudo bem. 

Não ia ficar tudo bem, disso eu sabia. Mas não respondi. Então Pedro voltou para casa de Amália enquanto fiquei sozinho com a culpa e a repugnância do tinha acontecido. Sentia culpa por ter me deixado envolver com Lourdes e repugnância pelo que fizera Pedro. Mas tentei me convencer de que tudo iria passar, logo todos iriam e de novo seria Amália e eu, apenas nós dois. O que podia acontecer era eu perder minha amada. E tinha certeza que meu relacionamento estava seguro, mas a que custo? Não importava. 

Dentro de mim, eu buscava mais uma caixinha na parte do esquecimento para guardar àquelas lembranças. Tão lotado estava meu esquecimento de coisas que devia, mas não tinha esquecido. Era inútil guardar lá às lembranças que me machucavam. Eu era forte e disso tinha certeza. A única coisa que poderia me fazer perder o controle era o desprezo de Amália e nunca deixaria isso acontecer. Era para ela o melhor namorado. Nunca brigamos nesses três anos de namoro e não foi por falta de motivos, Amália tinha muitos deles. Nunca brigamos porque assim decidi e por isso sempre me controlava quando ela estava com raiva. 

Sozinho naquela casa, experimentei as piores sensações que um ser humano pode experimentar. Não saberia nunca explicar, nem que eu dominasse todos os idiomas do mundo conseguiria descrever o turbilhão de sentimentos e ressentimentos que invadia meu ser. Mas eu tinha uma âncora que me segurava na sanidade da vida e, apesar de tudo aquilo ter acontecido, eu sabia que nosso amor iria me curar. Sim, isso era certo, eu seria curado. Só precisava suportar Pedro e Lourdes por mais dois dias e tudo voltava ao que era antes. Eu esqueceria tudo e com certeza sairia mais forte daquela situação. 

Não sei porque eu aceitei o convite de Amália. Sentar à mesa com aqueles dois não me fazia bem. Mesmo assim ali eu estava sentado tomando sorvete com dois psicopatas. Não fazia nem 24 horas que eu tinha sido usado e abusado por eles e, no entanto, os dois conversavam e riam como se nada tivesse acontecido. Uma indignação tomava conta de mim. Revoltado eu ria e conversava com eles como se tudo estivesse bem. E dizia a mim mesmo: - só mais dois dias. - Minhas caixinhas de esquecimento estouraram e voltaram todas de uma só vez as lembranças das múltiplas vezes em que fui abusado pelo meu padrasto. Levantei-me e sai. 

Como sempre, Amália não me questionou, deixou que eu fosse. Ela era maravilhosa. Sabia quando eu não estava bem e deixava que eu procurasse meus refúgios. Quase sempre me refugiava em seus braços. Não naquele dia, quis ir para casa e ela aceitou. Eu não tinha mais controle de todas lembranças, elas apunhalavam minha alma e quando eu olhava para Pedro via a imagem de meu Padrasto e em minha mente eu revivia os cinco anos em que fui por ele abusado sexualmente. Não era a primeira vez em que essas lembranças me assombravam, mas eu sempre dizia: - Calma, João, isso já passou. 

Eu sabia que estava mentindo para mim mesmo, e agora tinha certeza que não era passado. Em casa, sozinho, sentia ódio de mim mesmo. Eu poderia ter reagido e não ter deixado Pedro fazer aquilo comigo. O medo de perder Amália não justificava eu ter deixado ele fazer o que bem quis. Senti nojo do meu corpo. Embaixo do chuveiro tentei limpá-lo de toda a nojeira a que me tinham submetido. Gritei e esmurrei a parede até minhas mãos sangrarem. Todos os meus sentimentos que outrora encontravam-se amarrados pelos fios razão, soltaram-se. Eu senti tudo de novo. A barba de meu padrasto arranhando o meu umbigo, e voltou em mim a mesma sensação de repugnância que eu senti outrora. Vomitei. 

As lágrimas escorreram pelo meu rosto e se misturaram com o vômito em meu queixo. Tive ódio de mim mesmo por sentir que estava enganando Amália. O homem que ela tanto se orgulhava em dizer para todos que era seu namorado, não passava de um objeto sexual de pervertidos como meu padrasto e Pedro. Senti uma escuridão tomar conta do meu ser a cada cena de abuso que vinha a minha mente. E sucumbi ao me lembrar do primeiro dia em que fui abusado, eu tinha 11 anos. Todos na sala aguardavam o jantar, enquanto eu brincava no meu quarto. 

Voltei a esmurrar a parede do banheiro, quando me veio à mente a imagem dele abrindo a porta do quarto e depois fechando-a. Na sua mão uma faca afiada que eu supunha ser para cortar alguma coisa do jantar, nunca me passou pela cabeça que eu teria aquela faca em meu pescoço enquanto ele roçava seu membro nojento em minha bunda. Não suportei aquela situação e tentei me soltar, mas ele jurou me matar e a toda minha família. Eu tive medo. Fechei os olhos e esperei aquilo acabar. Vomitei quando senti escorrer por minhas pernas o gozo dele. Depois disso, virei seu objeto sexual, até quando com 16 anos fugi de casa e resolvi esquecer tudo. 

Tinha esquecido, até agora. Não conseguia mas ver nada. Fui até a sacada do meu prédio no terceiro andar e esperei que toda aquela dor acabasse, não acabou. Saltei em busca da minha liberdade. A última coisa que me lembro foi de um som ensurdecedor. E depois disso, nada. 

Acordei com um toque em minha mão, uma das poucas partes do meu corpo que não estava engessada. Amália gritou em meio ao choro: - ele acordou, ele acordou – algumas pessoas vestidas de branco entraram no quarto e vieram me examinar. 

Após toda aquela movimentação, Amália me contou tudo, em meio a um misto de riso e choro. Falou-me do acidente que eu tivera há três meses. Disse-me que nunca perdera a esperança de que eu acordaria. Eu quis lhe contar que não tinha sido acidente a minha queda da sacada. Mas de novo eu estava ancorado naquela vida feliz que eu tinha construído com ela. Resolvi então mandar aquele acontecimento para a caixa do esquecimento, onde eu guardava minhas piores lembranças. Na minha vida com a Amália só cabia os momentos felizes. Ali eu era seu namorado, o homem que ela tinha orgulho de chamar de seu. E isso bastava para mim.

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