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DOIS MUNDOS


A vida é um livro gigante de personagens já prontos. Quando nasce uma nova criança, um perfil para ela já está escrito. Vai estudar para ter um bom emprego e construir uma família. E existe uma grande retaliação contra as pessoas que se negam a seguir esse roteiro pré-existente. São consideradas estranhas. Perversas. Abominação. Quem nunca ouviu falar de uma tragédia tendo como vítimas mulheres, gays, negros, bruxos...? E o que essas pessoas fizeram foi apenas tentar fugir do roteiro de vida imposto a elas. 

A sociedade há séculos aprendeu olhar apenas para frente, e isso não é uma metáfora para indicar que o olhar está voltado para o futuro. Não. Olhar para frente, no sentido literal, ignorando tudo o que está fora do campo de visão. E abominando o que ainda não compreende. Tudo o que não se pode ver e muito menos explicar, a sociedade condena. Por medo, talvez. Ou por arrogância. Quando eles não sabem sobre algo dizem simplesmente que não existem. E essa explicação deve bastar. Afinal, é muito mais cômodo e seguro trilhar os caminhos já percorridos e conhecidos. 

Ao mesmo tempo em que as pessoas condenam a existência do que consideram fantasias, como bruxos, duendes e fadas, adoram deuses muito mais absurdos. Criam e pregam um céu que as pessoas em seu estado normal (mas o que é mesmo ser normal?) não acreditariam. Falam e amedronta crianças e adultos com histórias de inferno e purgatório. Mas não acreditam e até riem da cara das pessoas que falam que podem entrar em contato com o mundo dos espíritos. 

Mas ela via espíritos, pessoas que ninguém mais conseguia ver. De tanto ser taxada de mentirosa parou de dizer às pessoas o que via. Exceto a Daniele, a sua professora favorita, que lhe ouvia com atenção e nunca desacreditava do que ela falava. Daniele não duvidava de nada, pelo contrário, seus olhos se enchiam de um brilho inexplicável quando, entre uma aula e outra, Teresa lhe contava de suas visões e das sensações que tinha: calafrios e calores repentinos e passageiros. Inclusive, conseguia sentir com muita antecedência quando algo grave iria acontecer. 

Sua professora de português, amante dos contos e romances de terror, de nada duvidava. Apenas se deliciava com as narrativas da menina. No entanto, ao mesmo tempo em que gostava das histórias, preocupava-se com Teresa. Há um ano a menina estudava na ECIT Chiquinho Cartaxo e não havia se enturmado, conversava apenas com Léo. Na hora das refeições se servia e sentava em algum canto da escola com Léo. Daniele se preocupava com a saúde de Teresa e, por isso, conversou com a direção da Escola, que orientou uma consulta psicológica para a estudante. Ela não só se negou a falar com o psicólogo como se afastou da professora. 

- Por que Daniele tinha que fazer aquilo com ela justamente naquele dia? – pensava Teresa – justo no seu aniversário. Não almoçou. E no horário de almoço se escondeu na rampa que dava acesso à biblioteca a fim de ficar sozinha. Mas os gritos em sua cabeça não lhe deixava em paz. Gritavam: - Salve-se! Salve-se! – E ela só chorava. Todas as pessoas que amava eram tiradas dela. Primeiro tinha sido Jane, não a via a cinco anos, depois do ocorrido no aniversário delas, quando deu uma mordida na amiga. Ela não entendia porque tinha feito aquilo. Pensou na amiga e lembrou-se que aquele dia também era o aniversário de Jane. As duas nascera no mesmo dia, mês e ano. Estavam completando 18 anos. 

Teresa conseguiu calar as vozes em sua cabeça e voltou para sala de aula. Não conseguiu se concentrar. As lembranças de Jane lhe tomaram toda visão, invadiram seu cérebro. Moravam na mesma cidade e estavam há cinco anos sem se ver. E Sousa, a cidade onde elas moravam, nem era grande. Mas um misto de vergonha e culpa lhe impedia de procurar a amiga. Não sabia o que a tinha feito provocar a mordida, mas se sentia culpada e envergonhada com aquilo, além disso suas famílias preferiam que elas não se vissem mais. E assim foi feito. Naquele dia, completava exatos cinco anos que elas não se falavam. 

Tinha ficado as boas lembranças delas crianças correndo nas ruas sem calçamento do bairro Sorrilândia I. Dos primeiros anos de estudo na Escola Celso Mariz. Percebendo que Teresa não estava bem, Léo conversava com a miga, e levou uma bronca da professora Daniele. Tal atitude da professora só fez aumentar em Teresa a tristeza. São elos que se rompem e as pessoas acabam não percebendo. O mundo é cheio de elos entre pessoas, entre mundos, entre a natureza. Alguns desses elos as pessoas nem percebem e não há dor quando se rompem. Enquanto outros elos ao se romperem acabam levando de uma das partes um pedaço enorme de sua alma, o que causa uma enorme ferida. 

Por ter sua alma partida naquela tarde, Teresa mergulhou numa profundidade desconhecida de seu ser, e lá só encontrou dor e escuridão. Não sabendo lidar com tanta dor e vazio, mergulhou mais fundo em sua mente e se viu diferente do que era. Ao abrir os olhos, já a caminho de casa, na praça do Bom Jesus, viu um portal que se abria bem onde construíram uma estátua para homenagearem o milagre eucarístico. Diziam os moradores de Sousa que nesse exato lugar foi encontrado uma hóstia em cima de gramas bem verdes, na época da seca. E a única grama verde era a que estava em torno da hóstia. 

Teresa estava sentada no banco da praça bem de frente da estátua, onde sentava todos os dias para esperar o ônibus que lhe levaria para casa, no bairro do Mutirão. Olhou ao redor da praça, pessoas caminhando, outras embarcando em ônibus, algumas pessoas sentadas rindo. E todos ignoravam aquele portal aberto do lado da estátua. Do portal uma mulher jovem saiu, de vestido longo, azul, um véu branco sob os cabelos e descalça. A mulher veio ao encontro de Teresa e sentou ao seu lado. Aproximando-se do ouvido da menina lhe disse em sussurro. 

- Sua vida está em perigo, bruxa! – Teresa quis correr, mas estava paralisada. Era como se estivesse em um pesadelo e não pudesse acordar. Então a mulher lhe contou de um plano que envolvia Jane e a tia, um plano de drenar todos os poderes de Teresa. – Você é uma bruxa – cochichou a voz. Não podendo correr, Teresa, resolveu falar. Não era a primeira vez que falava com um espírito. Mas sempre que isso acontecia, ela tinha muito medo. Nunca iria se acostumar a ver o que os outros não via. 

Aran, esse era o nome da mulher, explicou que vivia do outro lado do portal para onde iam as bruxas depois da morte. E o que os sousense consideravam um milagre era apenas o local de um portal secreto, o único mortal que tinha tomado conhecimento desse portal tinha sido Frei Damião, mas o segredo havia morrido com ele. Era de extrema importância que Teresa jamais contasse sobre o portal. De repente Teresa desperta com a buzina do ônibus e os gritos do motorista: - Vamos, menina, tá dormindo? 

Ela sentou do lado da janela. O percurso do centro até o bairro do mutirão não era longo, uns 15 minutos, contando com o tempo das paradas. Mas foi tempo suficiente para Teresa ligar alguns pontos. Lembrou-se de quando tinha 7 anos, quando viu sua avó vir se despedir dela. No dia seguinte, sua avó morreu. E se recordou de quando a tia de Jane lhe fazia beber chás estranhos. E pensou no dia da mordida, seu aniversário de 15 anos, e em sua mente veio nítida a imagem da tia de Jane lhe oferecendo um brigadeiro. Sim, as duas estavam drenando seus poderes. Mais que poderes? 

Até aquele dia o único poder que sabia ter era o de ver espírito. E quem iria querer essa maldição? O fato não era os seus poderes, era a traição, sua melhor amiga havia lhe traído. Não demorou e ela começou a desconsiderar tudo aquilo. A história era uma absurdo. Ela bruxa? Que loucura! Tudo aquilo não tinha passado de uma vertigem por causa da fome. Um portal na praça do Bom Jesus? Uma maluquice. Sentiu saudades de Jane. Quis entrar em contato para desejar os parabéns a amiga. 

Ao pegar o celular para falar com Jane viu uma mensagem de Daniele. Ela não sabia mais o que sentia, todo o dia tinha sido tomada por um turbilhão de emoções, e acontecimentos bizarros rondavam sua cabeça. Considerou aceitar a ajuda da Escola e falar com um psicólogo. Nada do que ela tinha vivido naquele fim de tarde fazia sentido. Antes que descesse do ônibus a raiva que estava da professora se foi, e ela respondeu com um obrigado e muitos emojis às felicitações de sua professora favorita. Tudo estava voltando ao normal. E agora, na porta de casa, ela só queria esquecer todos aqueles acontecimentos estranhos. 

Ao entrar em sua casa foi surpreendida com um bolo e sua família na sala. Com a surpresa sentiu-se mal e do lado do bolo a mulher que vira sair do portal, na praça do bom jesus, ressurgiu e lhe disse uma única frase: - você precisa estar pronta! – a frase não lhe assustou. O que lhe atormentou vou ter que voltar a acreditar que nada do que vira na praça tinha sido fantasia. Ou era isso, ou estava ficando louca. Teresa, então, jogou a mochila da escola no chão e correu para o quarto, onde se trancou. Sua mãe guardou o bolo e não disse nada. Desde muito cedo aprendeu a lidar com as crises da filha. No dia seguinte, com certeza, ela acordaria bem e eles cantariam os parabéns. Afinal, ela só estava cansada, pois havia estudado a semana toda, até no sábado.

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