Tereza espreguiçou-se. Um raio de sol em seu rosto avisava que a muito já tinha amanhecido. E insistentemente tentava acordá-la, avisando que lá fora o domingo pedia um passeio. Era preciso olhar a rua, ver o céu sem nuvens, o vai e vem das pessoas. Ela puxou o lençol e bloqueou a claridade do sol que entrava por um pequena brecha na janela. O quarto estava meio claro, meio escuro, dando a sensação de nem noite e nem dia. Era assim que ela gostava: saber que era dia, mas continuar dormindo. Virou para o outro lado da cama e se embrulhou dos pés à cabeça. Apesar de estar um dia ensolarado ela sentia muito frio.
O lençol agora bloqueava o sol. O cheiro de carne frita que vinha da cozinha era impossível bloquear. E ela ficou sentindo o aroma da carne sendo frita ao mesmo tempo em que ouvia o chiado da panela de pressão. Provavelmente, estavam cozinhando feijão. Por mais de uma vez ela quis levantar. Suas pernas estavam sem força e ela sem nenhuma disposição. Não sabia o que estava acontecendo. Respirou fundo, e o cheiro da carne fez seu estômago roncar. Tinha fome, mas nenhuma disposição. Seu desejo naquele momento era levantar e participar da reunião familiar que se fazia em torno da mesa da cozinha. Tentou novamente se levantar e caiu fazendo um enorme barulho, pois ao cair derrubou a mesinha ao lado da cama com seus esmaltes e perfumes.
Os olhos de Tereza se arregalaram de tal forma que dava para medir o seu medo em graus. Ela não sabia o que tinha acontecido para se sentir tão fraca. No chão ela olhou para debaixo da cama, não viu nada, estava escuro como a noite sem lua. Sentiu vontade de se esconder lá. Mas desistiu. Ficou caída no chão esperando que alguma das pessoas que tanto conversavam viesse lhe ajudar. Vinte minutos se passaram e ninguém apareceu. Não tendo o auxílio que pensou que teria, ela rolou lentamente para debaixo da cama até todo o seu corpo ficar imerso na escuridão. Então, fechou os olhos e chorou. Ninguém ligava para ela. Era apenas a garota estranha. A garota estranha de 18 anos.
“A garota estranha de 18 anos” – quando formulou essa frase em sua mente, chorou mais ainda. E se lembrou de Jane, sua melhor amiga, quem não a via a exatos cinco anos. Nenhuma de suas lembranças lhe trazia conforto. A última vez que tinha visto a amiga foi no seu aniversário de quinze anos, que era também o aniversário de quinze anos de Jane. Apesar de serem filhas de pais diferentes, Tereza e Jane tinham exatamente a mesma idade, com diferença apenas de minutos. E por serem muito amigas, as famílias decidiram fazer o aniversário delas no mesmo dia, o que não deu muito certo. Antes do fim da festa Tereza surtou e mordeu Jane no braço até sangrar.
Embaixo da cama, pensando na amiga, Tereza tentou se lembrar do motivo de a ter mordido, mas não se recordava. Só sabia que a amiga lhe fazia muita falta. Já fazia quase meia hora que ela tinha caído. Decidiu sair do quarto e falar com a família, estava com fome, e o almoço provavelmente já estava pronto. Levantou-se sem nenhuma dificuldade. Tomou um banho e sentiu-se muito bem como se nada estivesse acontecido. Não se importava sequer com as lembranças do aniversário frustrado da noite anterior. A única lembrança que tinha era de sua mãe aparecer com um bolo. Depois disso se trancou no quarto e só agora iria sair.
Tereza sempre gostou de ficar sozinha. A única companhia que valorizava era a de Jane, com quem conversava, brincava e dava altas gargalhadas. Quando elas se afastaram, Tereza se tornou uma jovem reclusa, ficava pelos cantos caladas e quando estava em casa, passava a maior parte do tempo trancada no quarto. Na escola, só falava o necessário e não era amiga de ninguém. Conversava apenas com Léo. E a ele contava muito pouco. Ela sentia fortes dores de cabeça. Calafrios em dias quentes e por várias vezes ao levantar pela manhã não sentia as pernas. Todos esses sintomas só começaram a aparecer após seu surto no aniversário, que culminou na mordida.
Ao entrar na cozinha, o almoço estava pronto como ela supunha. Seus dois irmãos, um de 15 anos e outro de 9 anos, estavam almoçando. Ela sem cumprimentar ninguém pegou o prato que estava no armário ao lado do fogão e colocou sua comida. Sentou-se indiferente a mesa enquanto seus irmãos almoçavam e conversavam entre si, falavam de futebol. Ela não parecia estar ali, ninguém notava sua presença. Parecia invisível para o mundo. Só se sentia gente quando estava com Jane. Mal terminou de almoçar sua mãe trouxe novamente o bolo e colocou sobre a mesa, mas dessa vez não cantou parabéns. Ao ver o bolo Tereza desmaiou.
Os meninos que estavam a mesa almoçando correram assustados. A mãe de Teresa abaixou-se para acudir a filha, mas sem acreditar muito no desmaio. Aquela não era a primeira vez que ela fazia essas cenas para chamar a atenção. Porém, ao tocar o corpo da filha percebeu que sua temperatura estava altíssima, tentou animá-la e não tendo sucesso, desesperou-se. Ligou para emergência, que em menos de quinze minutos já estava em sua porta.
- Que lugar é esse? – se perguntava Teresa andando por um corredor com paredes de espelho, teto escuro e o piso de vidro. Olhava nos espelhos e via apenas metade do seu rosto refletido. Não tinha mais o olho esquerdo, a orelha esquerda... não tinha mais seu lado esquerdo. Quis gritar, mas a voz não saia de sua metade de boca. Desesperada tentou correr para encontrar uma saída. Não conseguiu, pois agora tinha apenas um braço e uma perna, tinha somente um lado do corpo. Sem poder fazer nada, encostou-se seu meio corpo no espelho e esperou. Não sabia o que estava esperando. Só sabia que não conseguia sair daquele labirinto de espelho.
Não demorou muito para começar a perceber reflexos no espelho de pessoas e lugares. Tentou novamente gritar e de novo não conseguiu. Só lhe restava olhar aquelas pessoas sem nada poder fazer. Fixou o único olho que tinha nas cenas refletidas nos espelhos a fim de se distrair. As imagens ali não lhe eram estranhas, eram na verdade lembranças, momentos vividos por ela. Ela estaria morrendo? Começou a se perguntar, pois sempre ouvira a mãe dizer que quando as pessoas morrem sua vida inteira passa diante de seus olhos. E naqueles espelhos era sua vida refletida.
Muito tempo ali naquela situação. Apenas metade de si sem poder se mover e vendo lembranças que ora lhe faziam sorri, ora lhe faziam chorar. Começou a notar um padrão naquelas imagens. Só eram refletidas nos espelhos lembranças suas com Jane. Com seu meio cérebro deduziu que aquilo era, na verdade, o inferno. E por ter mordido Jane, ela teria ido para o inferno. E aquele seria o seu castigo: relembrar os momentos mais felizes de sua vida com a pessoa que mais amou no mundo, sabendo que era sua culpa o fim da amizade. E aceitou o castigo, e ora chorava, ora ria. Se desesperava. Vivia a angústia que ela supunha ser o inferno. Mas teria que se acostumar, uma vez que o inferno seria eterno.
- A senhora precisa descansar! – a enfermeira insistia com a mãe de Teresa. E afirmava que ela não podia ficar mais no hospital, explicando-lhe:
- Se sua filha acordar a gente chama a senhora. Mas você precisa descansar, já está aqui há mais de uma semana sem dormir direito.
Como poderia dormir sabendo que sua filha estava na UTI, era impossível. O medo de Teresa morrer expresso no rosto de sua mãe, era um tanto egoísta, pois se sentia culpada pela filha está naquele estado. Nunca havia levado muito a sério o problema da filha. E se ela morresse agora quem iria lhe redimir dessa culpa? Além disso, a angústia era grande por ainda não ter um diagnóstico. Não, ela não iria sair do hospital sem saber o que estava acontecendo com sua filha.
- Vá pra casa, eu fico aqui com ela! – falou Jane tocando o ombro da mãe de Teresa. Essa por sua vez olhou para Jane como se não estivesse acreditando que ela estava ali. E a olhou ao mesmo tempo incrédula e agradecida, e a abraçou. Jane ficou no hospital como prometido. Na verdade, não tinha raiva de Teresa. Da situação no aniversário tinha ficado mais o constrangimento. E depois daquilo não tinha mais visto sua amiga, até agora. Abriu vagarosamente a porta do quarto, uma enfermeira estava mudando a roupa de cama. Jane aguardou na porta receosa e envergonhada. Sabia que a amiga estava desacordada, porém sentia-se intimidada apenas em saber que ela estava ali tão perto.
Uma mão agarrou o único braço de Teresa. E um dos espelhos começou a se romper fazendo um portal se abrir. De repente, o espelho começou a se diluir e uma das paredes transformou-se em uma cachoeira. Teresa ainda não conseguia andar. Mas sentiu uma força lhe puxando rumo a cachoeira e ela se deixou levar. A única coisa que queria era fugir daquele inferno. E ao atravessar a cachoeira viu refletido na sua frente o rosto de Jane. Deduziu que a amiga havia lhe perdoado e que por isso estava saindo do inferno.
Mal sabia Teresa que de salvadora Jane não tinha nada. E que a amiga não estava ali no seu quarto para lhe perdoar, mas para drenar o restante de seus poderes. Sim, Jane e Teresa eram bruxas. Mas apenas Jane tinha consciência disso, pois em sua família também tinha uma bruxa, má, mas muito poderosa. E o plano todo veio da bruxa má. O aniversário que tanto atormentava Teresa foi, na verdade, o primeiro ritual que permitiria a Jane drenar da amiga seus poderes. E aquele era a último momento de todo o processo de drenagem dos poderes de Teresa.
Jane se aproximou de Teresa, segurou-lhe as duas mãos e começou a resgatá-la do mundo espelhado, onde Teresa encontrava-se blindada do feitiço que lhe perseguia por mais de cinco anos. O que para a enferma era sua salvação. Era para a visitante a absorção final de todos os poderes da inocente bruxa. E certa de que estava sendo salva, Teresa se entregou ao feitiço da bruxa ambiciosa.
O aparelho em que Teresa estava ligada disparou, indicando que a vida deixava aquele corpo tão sofrido. Os médicos correram para salvá-la. Foram o mais rápido que puderam. Mas só conseguiram encontrar no quarto um corpo já sem vida, e uma moça que chorava desesperadamente a morte da amiga recém encontrada. O que mais surpreendeu os médicos, foi o fato do corpo sem vida ser da moça que visitava a enferma. Enquanto a paciente na UTI estava viva chorando a morte da amiga que não via há cinco anos.
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