Você precisa saber da verdade, cara leitor. Eu contarei a você, antes que siga a leitura desse texto e se decepcione com a história que é aqui contada. A verdade é que sou um escritor medíocre, um péssimo contador de história. E por isso não devia me atrever a contar essa grandiosa e dolorosa narrativa. Mas, caro leitor, infelizmente, foi a mim que essa história foi contada e cabe a mim contar a vocês.
Era um sábado, e ela estava comigo em um barzinho contando-me como estava superando uma separação. Como fomos parar ali não importa, digo isso porque não me lembro bem como aconteceu, o que me lembro e muito bem, foi que ela me contou. Disse-me que vivera por 8 anos com o seu namorado e que há 8 meses haviam se separado. E começou a me contar como estava sendo difícil lidar com tudo aquilo.
Ela precisava desabafar, logo percebi isso. E pus-me a ouvi-la. Entre uma lágrima e um gole de cerveja, ela me contava. Eram apaixonados. Viviam juntos há 8 anos, e o mais irônico é que tinha sido ela quem havia pedido a separação. Claro, alguns dias após pedi a separação ela o pediu para voltar, mas ele lhe disse não. E foi ai que seu sofrimento começou. Enquanto ela me contava um fio de lágrima escorreu pelo seu rosto. Deduzi que ela ainda amava o ex-marido.
Dedução errada, como disse, caro leitor, sou medíocre. E naquele momento descobri também que era um péssimo observador. Mas que bom que ela me contou em detalhes, e espero que eu consiga trazer para vocês o sentimento que ela me mostrou. Disse-me que essa separação a levara ao fundo do poço. Já não sentia vontade de viver. Trabalhava o dia inteiro e quando chegava em casa não conseguia descansar. Era na casa da irmã, ou melhor, nos braços da irmã onde encontrava amparo.
Chegou um momento em que parecia que o mundo para ela não tinha mais nenhum significado. Quando ela me disse isso, pasmei. E ela não parava de deixar escorrer aquele fio de lágrima. Eu tentei consolá-la com palavras, dizendo que tudo ia ficar bem. Foi quando ela me disse que estava tudo bem. E me falou que não se permitia viver daquela maneira. Em frente ao espelho teve uma conversa com ela mesmo e ordenou que ela saísse daquela situação, que reagisse. E assim fez.
Aliás, nunca vi na vida alguém tão forte quanto ela. Desde muito cedo teve que lutar pela vida. Foi obrigada a se superar dia após dia, tragédia após tragédia. E não pense, caro leitor, que essa superação parte de sua sexualidade, do fato dela ser um menino travestido de mulher. Quanto a sua sexualidade foi normal, mas a vida, essa sim, foi cruel com ela. Vamos chamá-la de K.
Ainda adolescente K foi obrigada a superar o suicídio do pai, morto por enforcamento. Essa foi uma tragédia em sua vida, pois o pai a amava muito e ela o amava muito também. Porém, independentemente do tamanho ou intensidade do amor deles, o suicídio é por se só uma ferida que não cicatriza. Por que eu sei disso? Também carrego aberta em mim essa ferida. Mas essa história não é sobre mim.
Quis mudar de assunto ao ver ela chorar tanto relembrando a morte do pai. E levantamos e começamos a sambar, ela começou a sambar. Se eu não sei escrever tampouco sei sambar, e meu jeito desengonçado fez K ri. E ao acabar a música ela sentou-se novamente, bebeu outro gole de cerveja e disse “A vida foi muito cruel comigo”. Eu não podia discordar dela, não depois do que fiquei sabendo em seguida.
Ela continuou. E contou que foi morar com a mãe de seu pai, após a morte dele. Queria ajudá-la. O que aconteceu foi que as duas acabaram se ajudando. Sua avó foi uma mãe para ela, não que K não tivesse mãe. Ela tinha, e era linda, vaidosa. Mas sua mãe também achou uma boa ideia K ir viver com avó materna. No entanto, abalada pela morte do pai, ela se mantém perto de sua mãe.
E em muitas conversas com a mãe pediu que ela não a deixasse. Sua mãe prometeu nunca fazer o que o pai fizera. Disse ainda que seria mais provável matar alguém que cometer suicídio. Tais palavras acalmaram o coração de K que não percebia que a mãe seria capaz de deixá-la. Infelizmente, sua mãe também cometeu suicídio por enforcamento em um suporte de tevê. Quando K me falou isso repeti em meu pensamento a frase que ela havia me dito: A vida foi muito cruel com ela.
Vi seus olhos alagarem e pensei no quanto ela era forte, ou de como precisou ser forte. Não sei de fato no que pensei, só achei que ela era uma vencedora. A ferida que trago aberta em minha alma começou a sangrar. Baixei a cabeça e com o guardanapo enxuguei a lágrima que quis sair de meus olhos. Não me atreveria a chorar minhas mágoas diante de tamanha dor.
Enquanto eu enxugava a lágrima, ela disse em tom alto, que o que mais havia abalado ela tinha sido a morte de sua avó. A mesma com quem foi viver depois da morte do pai. Pasmei! Não conseguia acreditar como a vida tinha sido tão cruel com uma pessoa. Mas nada disse, apenas ouvi-a contar.
Ela narrou então o que sua avó dissera no hospital a todas as pessoas que iam visitá-la “Cuide de K, eu sei que eu vou morrer” inclusive, disse a K que a única coisa que a deixava triste em seu leito de morte era deixar K sozinha. E numa noite em que K dava banho em sua avó, ouviu de novo a mesma conversa. Sua vó dizia que ia morrer e que ficava triste em ter que deixá-la sozinha. E de fato ela morreu. Mal concluiu a história K começou a chorar.
E como se quisesse justificar porque o seu sofrimento pela separação, disse-me que conhecera seu ex nesse período e que ele havia lhe apoiado e lhe dado muita força. Na verdade, ele fora sua âncora por muito tempo e talvez por isso estivesse sendo muito difícil superá-lo. No entanto, todos os dias ela travestia a sua alma sofrida de alegria e entusiasmo e enfrentava a vida. Não um menino travestido de mulher, mas um ser sofrido travestido de força, superação e muita vontade de viver.
Sai dali com um nó na garganta e com uma enorme vontade de conhecer mais a sua história. Ela me falou que escrevia diários e até hoje estou ansioso em ler seus diários e fazer um passeio por sua alma.
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