Pular para o conteúdo principal

JANTAR

Nadia Bambirra interpreta uma mulher amargurada devido ao casamento fracassado Foto: Ricardo Fuji/Divulgação

Uma lágrima escorreu pelo meu rosto. Como eu tinha ódio de cortar cebola! Como eu tinha ódio de cozinhar! Limpei a lágrima e continuei a picar a cebola com tanta raiva que sentia um enorme prazer em cada corte feito. Cheguei por várias vezes a imaginar que a cebola era minha vida, e com muita vontade eu a cortava, assim como faria com minha rotina. Enquanto me perdia na imaginação, o cheiro do arroz anunciava que já passara do tempo de desligar o fogo. “Dane-se”, eu pensei, “que coma arroz queimado”.

Desliguei o fogo, e mexendo o arroz percebi que não havia queimado. Em meu rosto uma mistura de lágrima, causada pela cebola e suor da quentura deixava-me mais irritada. Eu tinha 27 anos e estava de serva de um homem. Um maldito homem que sequer foi capaz de me dar filhos. Mas eu estava ali, fazendo o jantar dele. De repente pensei: “Por que estou fazendo isso?” E quem disse que encontrei resposta. E por não encontrar resposta a raiva em mim cresceu, comecei a resmungar. Um resmungo que nada dizia. 

Refoguei a cebola. E com desprezo joguei os pedaços de frango na panela. Eu queria externar todo o meu desgosto, toda a minha raiva. Consegui apenas pequenas queimaduras com os respingos do óleo que me acertara. “INFERNO”, gritei bem alto. O mais alto que consegui. Ele da sala perguntou se estava tudo bem. Eu disse que sim. Quando eu deveria ter dito que não estava nada bem. Deveria ter dito que eu era infeliz. E que não aguentava mais viver daquela maneira. 

Não cheguei a dizer nada disso para ele. Na minha cabeça, porém, eu gritava para mim mesma: “Você não merece viver dessa maneira, rebele-se”. Como? Eu não sabia. O chiado da panela de pressão aos poucos levava embora aqueles pensamentos ruins. E na pia, eu lavava as louças sujas do almoço. Não tinha tempo de fazer isso quando terminava de almoçar, pois tinha que voltar para o trabalho, onde exercia a função de gerente de vendas de uma distribuidora de bebidas. Lá eu me sentia realizada, era a melhor gerente de toda a região. Em casa, eu era apenas a esposa, ou melhor, a serva do meu marido.

Tirei a pressão da panela. E da sala o grito dele me pedindo que fizesse suco. QUE ÓDIO. Ele não me ajudava em nada. O ódio retornou em uma dose bem maior e tomou conta de todo o meu ser. Eu já tinha feito o suco. O que me incomodava era a mania dele de estar me mandando fazer as coisas. Como deixei minha vida chegar a isso? Na empresa, onde trabalho, há mulheres de 30 a 40 anos que vivem suas vidas independentes, vão a festas, viajam, namoram.... E há mulheres com menos de 25 anos, que são casadas, têm filhos e passeiam no parquinho da praça com suas crianças. E eu, o que tenho? Um marido preguiçoso e machista que me faz de sua serva. 

O jantar estava pronto. E eu precisava de um banho. Queria tirar de mim o cheiro de alho e cebola. O gosto de tempero que ficava em meu suor. Eu queria jantar arrumada e cheirosa, sentir-me mulher. Meus pensamentos precisavam se acalmar. Só estava cansada, eu me dizia no chuveiro. Estava revoltada por que invejava as minhas colegas de trabalho. Mas cada pessoa tem sua vida e deve ser grata por ela. Eu era uma sortuda, pensava, tentando me conformar com o que tinha. Era casada, bem empregada. Eu era feliz. Toda noite eu tinha que me convencer da mesma coisa. 

Voltei à cozinha, eu estava arrumada e cheirosa, disposta a ter um jantar agradável com meu esposo, regado de conversa e risadas. Perguntaria do dia dele e lhe contaria situações hilárias do meu trabalho. Mas ele já estava colocando seu prato na pia. Acabara de jantar. E eu o olhei com a maior certeza da vida de que eu estava tentando me enganar. Ele sequer teve a consideração de esperar para jantarmos juntos. Justo o jantar que eu fiz sozinha. Sentei a mesa da cozinha, pois ele voltou para sala. E engoli a comida com grandes doses de raiva e desgosto. Um dia eu criaria coragem e iria embora, pensava enquanto jantava.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Que tal estudar gramática pelo youtube de graça? É possível sim.

Você com certeza conhece o youtube. Como você utiliza o youtube: para ver vídeos engraçados, notícias, músicas, filmes, tutoriais? Já pensou em estudar gramática pelo o youtube? Não. Pois está no momento de você considerar essa hipótese, porque por mais que tentamos não dá importância a gramática, ela está presente em nossas vidas o tempo todo. E vamos sempre ser avaliados quanto ao uso dela, seja na vida acadêmica, profissional ou até mesmo em um post nosso no facebook. Apresento a vocês alguns canais de ensino de gramática no youtube que assisto e, por isso, posso indicar. Claro! Há milhares de canais que abordam essa temática, fique a vontade para procurar um que fale mais a "sua língua". Segue lista: GramáticaEmVídeo - Prof. Fábio Alves PreparacaoDigital Aprenderaulas.com Ricardo Luz Deivid Xavier Professor Leo Portal Didático Pesquisem mais canais de ensino no youtube colocando: "Aula de... e o assunto que você quer aprender.

Está aí três coisas que não se discute: política, religião e futebol.

Eu tenho para mim que essa ideia de que não se discute política, religião e futebol foi criada por uma comissão formada por políticos corruptos, chefes de religiões que enriquecem graça a fé cega de muitos e a CBF (Confederação Brasileira de Futebol).  Não é difícil ouvir alguém proferir a frase: política, religião e futebol não se discute. De fato, não se discute, pois estamos acostumados a votar por todos os motivos pessoais possíveis sem nos preocuparmos com o melhor para o coletivo, e isso se aplica aos mais variados tipos de eleições. Não discutimos religião porque achamos que a nossa é a única verdadeira e que, por isso, quem não pertence a ela deve ser criticado e convertido a nossa fé. E por que não discutimos futebol? Esse último não discutimos porque não sabemos lidar com as opiniões que diferem da nossa. Nós não discutimos política, religião... imagina aí se seríamos capazes de discutir futebol.  Talvez por essa nossa incapacidade de discutir, de fo...

Batom vermelho!

Imagem da internet Arrumei-me cedo para ir a igreja, era uma manhã de domingo. Sentei-me diante do espelho a olhar meu rosto de meia idade, meu sorriso já amarelado e meus cabelos longos e sofridos, que agora eu estava a penteá-los. Abri a gaveta da penteadeira para pegar uma frasco de perfume leve, guardado especialmente para ser usado  no domingo, quando ia falar com Deus. Aprendi desde cedo que não se deve ter vaidade. Isso é pecado! Como muitos outros hábitos femininos: cortar e tingir os cabelos, usar roupas curtas e maquiagem. Esses hábitos nunca couberam em mim, fui, desde criança, uma santa, ou quase isso.  Ao procurar o pequeno frasco de perfume na gaveta, minha mão tocou algo que não era perfume. Eu sabia disso pelo formato do frasco. Tirei a mão da gaveta e só então pude perceber que se tratava de um batom, mas não era uma batom comum, e sim um batom vermelho. Com aquele objeto na mão, lembrei-me de como ele fora parar ali. Por rebeldia eu havia comprado,...