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PESADELO


            


            Acordei sobressaltado. Pulei da cama como se estivesse fugindo de alguém, não sei. Se era um pesadelo, eu não me lembro. Mas estava com a boca seca. E a única coisa que me veio à mente naquele momento foi ir até a geladeira e beber um copo de água bem gelada. Andei em direção à porta, mas não sabia o que estava acontecendo, a cada passo que eu dava mais a porta se distanciava de mim. E a sede aumentava.  Meus lábios doíam de tão secos. Eu corri. E a porta se distanciou mais ainda. Decidi me sentar e esperar. Ao fazer isso a porta se aproximou de mim como se fosse uma pessoa e ficou me observando. E foi se abrindo vagarosamente, rangendo no ritmo da minha respiração. Fechei os olhos.
            Minhas pálpebras pareciam transparentes, pois ao fechar os olhos via a porta se abrir com mais nitidez e meus ouvidos captavam com mais ênfase o ranger daquela fechadura. Enferrujada? Não sei. Fiz a única coisa que podia. Gritei. Mas a voz falhava e meus lábios ardiam de tão secos, racharam. E de supetão a porta se abriu e um vento forte me puxou. Acordei. A dúvida, porém, me tomava todo o corpo. Eu estaria mesmo acordado?   Tudo o que eu via me mostrava que sim. Estava na minha cama, no meu quarto. Uma resta de sol iluminava meu rosto, e a sede tinha acabado. Suspirei aliviado.
            E mesmo sem sede decidi ir à geladeira e tomar um copo de água bem gelada. Por mais estranho que pareça, a geladeira tinha sumido. Sem entender nada e com medo de ainda estar preso naquele pesadelo. Gritei novamente. Um grito de socorro tão forte que minha mãe veio ao meu encontro desesperada querendo saber o que tinha acontecido. Perguntei pela geladeira e ela sem entender nada me disse que tinha ido para o conserto. Envergonhado sai da cozinha e fui tomar um banho. No chuveiro a água corria pelo meu corpo, mas não me sentia melhor. Não sabia mais o que era sonho ou realidade. Estaria ficando louco? Comecei a me questionar.
            - Vai demorar nesse banho? – uma voz diferente da voz de minha mãe indagou-me. Quem seria essa nova personagem feminina inserida nessa trama que eu desconhecia? Eu não sabia. Aquela voz não me era familiar, mas na dúvida decidi seguir o enredo daquela história. Vesti-me e fui tomar café da manhã. A geladeira estava lá, minha mãe tinha sumido e a mesa estava uma mulher jovem, bonita e rodeada de duas crianças, um menino de uns sete anos e uma menina de uns cinco anos. Não os conhecia. O medo, porém, não me deixou fugir.
            - Como foi sua noite? – a mulher me perguntou. Resolvi menti e lhe disse que tinha sido boa. Ela continuou falando e me disse que eu era muito forte por considerar boa uma noite em que embriagado vomitei inúmeras vezes. Quis saber de minha mãe. O silêncio tomou conta das pessoas à mesa. - Sua mãe? – indagou a mulher. E continuou: - você está bêbado, amor? Sua mãe morreu há dois anos. Aquela informação me veio como um punhal em meu peito. Como assim morreu? Eu pensei, há pouco falei com ela. Foi que me lembrei de que antes de acordar eu havia sido engolido pela porta. Talvez eu estivesse sonhando. Ou em outra dimensão. Já não sabia em que acreditar.
            Levantei-me e ao sair às crianças me seguiram chamando-me de papai. Que mundo era aquele? Desde quando eu tinha filhos. Tranquei-me no quarto e encarei a porta a manhã toda na esperança de ser por ela engolido e voltar para o meu mundo. Fiquei horas encarando a porta e nada acontecia. Estaria eu preso naquela dimensão ou sonho? O que fazer para voltar? Senti fome. Voltei à cozinha e almocei com aquela família estranha. Brinquei com as crianças, sorri para a mulher. Fingi fazer parte daquela história. Tentei me encaixar naquele cenário. O plano, no entanto, já estava sendo traçado em minha mente.
            Ao anoitecer cheguei à conclusão de que a única forma de acordar ou fugir daquele mundo estranho era descontruindo todo o cenário e eliminando seus personagens. Nenhuma história existe sem personagem.  Eu já sabia o que teria que fazer. Seria muito difícil, mas era o correto. No jantar voltei à mesa e não me servi. Deixei que a mulher e as duas crianças comesse a vontade. E fiquei apenas esperando.
            O efeito começou pela menina. Sua boca começou a sangrar e ela gritava enlouquecidamente: - Tá doendo, mamãe! Minha barriga tá queimando. Socorro, socorro! – a mulher correu para socorrer a menina e eu não podia esperar que o veneno fizesse efeito. Peguei a faca e cortei o pescoço do menino. Senti o corpo do menino perdendo as forças, e caindo sobre mim. O sague que saia de sua garganta umedeceu meu corpo, e a sensação de refrescância que a água do chuveiro não me trouxe, senti naquele momento. Gostei daquela sensação e enfiei a faca ainda mais funda no pescoço do menino, mas o sangue estava acabando. Furei de novo, e de novo, e de novo... Perfurei todo o seu corpo e nada de sangue.
A mulher se desesperou ao me fazer aquilo. E correu ao meu encontro. Eu perfurei sua barriga e ela em sua agonia de morte viu a menina dar seus últimos suspiros. E enquanto repetia exaustivamente a palavra não, seu sangue molhava ainda mais meu corpo. A sensação, porém, não era boa. Seu sangue era denso e não era nada refrescante. Jogue seu corpo no chão e decidi experimentar o sangue da menina. Perfurei sei corpo. O sangue escorreu sobre minhas mãos e eu levei até meu rosto. Mas estava frio. Nada se comparava ao sangue do menino, quente e refrescante.
            Nunca havia me sentido tão vivo como naquele momento em que o sangue do menino escorria pelo corpo. Senti necessidade de mais. Nesse momento a cortina de fumaça que cobria meus olhos começou a se esvair e eu comecei a me lembrar daquelas pessoas mortas. O dia do meu casamento. Os três anos de namoro e muita promessa de uma vida feliz. Minha alma começou a se partir. O que eu fiz? Meu Deus, o que eu fiz?
            São meus filhos mortos. Eu me lembrei de tudo. Os primeiros passos de Martinha. As histórias que contei a Marcos. Eles eram meus filhos, não era um sonho. A lucidez tomou conta do meu ser. Eu quis gritar, não consegui. O grito ficou enganchado na garganta. Abracei-me com meus filhos. Eles estavam perfurados e neles não havia mais vida. Quis morrer... levantei-me  e olhei os corpos sem vida no chão, cobertos de sangue. A lembrança da sensação do sangue do menino sobre o meu corpo tomou conta de mim e substituiu toda culpa. Agora meu único desejo era sentir de novo aquela sensação.


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