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Arrumei-me cedo para ir a igreja, era uma manhã de domingo. Sentei-me diante do espelho a olhar meu rosto de meia idade, meu sorriso já amarelado e meus cabelos longos e sofridos, que agora eu estava a penteá-los. Abri a gaveta da penteadeira para pegar uma frasco de perfume leve, guardado especialmente para ser usado no domingo, quando ia falar com Deus. Aprendi desde cedo que não se deve ter vaidade. Isso é pecado! Como muitos outros hábitos femininos: cortar e tingir os cabelos, usar roupas curtas e maquiagem. Esses hábitos nunca couberam em mim, fui, desde criança, uma santa, ou quase isso.
Ao procurar o pequeno frasco de perfume na gaveta, minha mão tocou algo que não era perfume. Eu sabia disso pelo formato do frasco. Tirei a mão da gaveta e só então pude perceber que se tratava de um batom, mas não era uma batom comum, e sim um batom vermelho. Com aquele objeto na mão, lembrei-me de como ele fora parar ali. Por rebeldia eu havia comprado, mas como não tive coragem de usá-lo guardei na gaveta e lá ficou esquecido por quase... não sei quanto tempo. Aliás, quando se é uma quase santa o tempo não importa, nada de interessante acontece para marcar o nosso tempo e assim o passado se perde na monotonia de nossa memória.
Recordo-me apenas que quando comprei o tal batom quis usá-lo, porém minha alma santa não me permitiu cometer tamanha transgressão. O que pensaria o pastor de minha igreja? Como as irmãs e os irmãos iriam me olhar? Prevendo a reação dos membros de minha igreja decidi que o melhor seria jogar aquele objeto de pecado no lixo. No entanto, fazer isso já era impossível, tinha despertado certa admiração pelo batom. Decidi guardá-lo e esquecê-lo. E tinha esquecido, mas agora ele estava em minha mão. E em minha alma o desejo de usá-lo crescia. Disse para mim mesma que era tentação do demônio.
Por mais de uma vez tentei devolver aquele frasco para gaveta. Não conseguindo fazer isso, passei-o em meus lábios. Olhei-me no espelho e vi em meu rosto uma luz se acender. O vermelho do batom havia acendido em mim a beleza que nunca tive, desejei ser beijada. Esse sempre foi o meu sonho: ser beijada por um homem. Adimirei-me por um tempo e quis ter a sensação de sentir os lábios úmidos e macios, assim supunha que fosse, de um homem a me tocar. Queria ser mulher, sentir o prazer, ou a dor, do sexo. Mas eu precisava sentir algo. Nada. Não senti nada.
Percebi então que estava morta. Eu sempre estivera morta. Busquei em toda minha existência sentir a plenitude da vida, apeguei-me tanto a essa busca que acabei ignorando as sensações, desejos e prazeres humanos. Novamente o sentimento de rebeldia, que outrora fizera-me comprar um batom vermelho, encheu-me a alma e, naquele momento de lucidez, decidi ir a igreja de batom. Já não me importava mais o que os outros pensassem, eu queria viver. E assim fiz: fui a igreja com os lábios vermelhos da cor da paixão, da cor do sangue de cristo. Minha alma precisava do pecado que eu sempre me neguei cometer. Agora, eu iria alimentá-la.
Nilson de Sousa Rutizat
Licenciado em Letras com habilitação em Língua Portuguesa.
Professor de Língua Portuguesa e Literatura na rede estadual da Paraíba.
Parabéns! Bela crônica.
ResponderExcluirObrigado, Zenilda! Muito honrado pelo elogio.
ExcluirParabéns essa crônica trás uma bela lição,que devemos nos permitir vever sentir prazeres e emoções que a vida oferece porém de formas positivas.. devemos viver a vida porque ele passa o que vão nos retas são as alegrias e os grandes momentos há ser lembrados por todos nós !
ExcluirIsso mesmo, Rafael! Não é pecado se não prejudica ninguém.
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